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Os preços de obras licitadas: rir para não chorar

Há uma enorme depreciação dos valores das obras civis no Brasil, gerando enormes prejuízos à sociedade, motivada pela defasagem/desatualização de orçamentos em licitações

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Por Rafael Moreira Mota e Saulo Malcher Ávila, O Estado de São Paulo. Há 40 anos, em 30 de novembro, o Brasil perdeu um dos seus maiores compositores, o poeta e músico Cartola, que, com a sua voz marcante e as letras, tocava a alma. Do sofrimento da pobreza da infância, presenteou a todos com a riqueza das suas obras, um legado brasileiro. Espera-se também que outras obras – as da construção civil – recebam também o seu valor, afinal, engenheira de qualidade no Brasil também há.

Orçamentos em licitações, por força de lei, devem se basear nos preços unitário referenciados por sistemas como SINAPI, obtidos a partir de esforço do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) e da Caixa Econômica Federal para a coleta, apuração, cálculo e divulgação dos preços médios regionalizados dos insumos da construção civil. Isto é, tais valores já representam o valor de mercado e, portanto, o custo desses insumos.

Contudo, há uma enorme depreciação dos valores das obras civis no Brasil, gerando enormes prejuízos à sociedade, motivada pela defasagem/desatualização de orçamentos em licitações, utilização indiscriminada do pregão, descontos imprudentes concedidos, dentre outras razões.

Essa situação, na maioria das vezes, faz com que a vencedora do certame não tenha condições financeiras de executar a obra licitada na forma e no tempo esperados. Assim, para que tente entregar a obra, a contratada poderá comprometer a qualidade dos serviços e materiais utilizados, deixar de pagar de forma adequada verbas e encargos trabalhistas, itens importantes do BDI, como seguros e segurança e medicina do trabalho etc.

E mais, caso a obra seja entregue, essa poderá não se mostrar segura ou útil à finalidade prevista pelo Poder Público, demandando em curto ou médio prazo a realização de nova contratação para recuperação ou promoção de adaptações. Uma verdadeira zombaria ao Brasil.

Também não se pode esquecer – e não é piada – que, caso a contratada não entregue a obra, além do significativo dinheiro público já desperdiçado, será necessária a realização de nova contratação para sua finalização, sendo certo que parte da obra poderá ter sido perdida, seja por deterioração ou depredação, situação que ainda é comum no Brasil e exige grande esforço e tempo das instituições na busca de soluções, como é o caso das dezenas de milhares de obras públicas que hoje se encontram paralisadas.

Além dessa severa consequência, outras devem ser avaliadas quando se debate a necessidade de que as contratações públicas, especialmente de obras, sejam realizadas da melhor forma possível, evitando que se crie sequelas a ser enfrentadas pelas gerações futuras.

A realização de contratação com notória defasagem no orçamento de uma obra pública, por exemplo, deixa excessiva margem para a ocorrência de episódios de corrupção, o que caminha em sentido contrário ao fortalecimento da cultura da integridade na legislação brasileira, que, cada vez mais, exige a implantação de mecanismos de combate a atos impróprios na estrutura de empresas contratadas pela Administração Pública. Verdadeiro divisor de águas no Brasil.

No atual cenário, em que o aprimoramento de aspectos de governança está em evidência e é exigido do particular, não se mostra compatível que se admita a celebração de um contrato pelo Poder Público que, desde sua origem, possua brechas para que agentes públicos e privados mal-intencionados assegurem a celebração de termos aditivos de valor em troca de vantagens ilícitas.

De outro lado, contratos celebrados por preços muito baixos, inferiores ou muito próximos aos custos, tratam-se de instrumento perfeito para a lavagem de dinheiro por criminosos através de empresas de fachada para dar lastro a dinheiro ilícito, o que se admite ser uma hipótese estarrecedora, entretanto, jamais pode ser considerada como impossível.

É grave o descaso com o erário, pois, frisa-se, perda de valiosos recursos públicos ocorre não só de forma imediata, mas também mediata, em razão da necessidade de movimentação dos Poderes Executivo e Judiciário, Ministério Público e Tribunais de Contas para, no exercício do poder fiscalizador, sancionatório e punitivo, buscar apurar e apenar agentes públicos e privados responsáveis por irregularidades/crimes, através do controle interno ou da propositura de ações judiciais criminais, cíveis, de ressarcimento ao erário, por ato de improbidade administrativa etc, o que custa dinheiro e agrava o dano à coletividade.

Permitir a celebração de contrato por valor que desde o nascedouro se sabe não ser compatível com os custos para sua execução se trata de conduta jocosa, ilícita e irresponsável do agente que não atuou corretamente, o que justifica a sua responsabilização por zombar do dinheiro do contribuinte.

Os desavisados pensam que o anúncio de obras gera alegria na engenharia. Porém, esquecem que preços defasados trazem outros sentimentos. Cartola, tocando o coração de todos, cantava que “quem me vê sorrindo, pensa que estou alegre”, mas “meu sorriso é por consolação”. Na lição do poeta, a engenharia com obras de qualidade e preço justo precisa ir, precisa andar, por aí a procurar, rir para não chorar. Que o legado da obra com qualidade sobressaia neste mundo que é um moinho.


*Rafael Moreira Mota, mestre em Direito Constitucional e sócio do escritório Mota, Kalume Advogados

*Saulo Malcher Ávila, sócio do escritório Mota Kalume Advogados

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