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Pandemias do passado deixaram marcas nas cidades. Como será o urbanismo pós-coronavírus?

Espaços públicos arejados voltam ao foco, assim como residências pensadas para incluir home office e ensino

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Por Nelson Gobbi e Fernanda Pontes, O Globo. O desenho das principais metrópoles do mundo foi traçado conforme a ordem econômica e social — mas também pela catástrofe. O Grande Incêndio de Londres, em 1666, e o Terremoto de Lisboa, em 1755, por exemplo, definiram a paisagem destas capitais. O que a Covid-19 nos faz lembrar é o quanto pandemias também moldaram a arquitetura e o urbanismo. As cidades têm a marca das doenças que enfrentaram: dos bulevares abertos na Paris assolada pela cólera no século XIX ao Central Park criado para livrar o ar de Nova York de “miasmas”, passando pelo Bota-Abaixo de Pereira Passos, cujo pretexto para derrubar cortiços era livrar o Rio de surtos de varíola e febre-amarela — surtos realocados com seus moradores, aliás.

Hoje, é incontornável que arquitetos e urbanistas debatam quais serão as mudanças nas cidades e habitações após o impacto do coronavírus — futuros congressos devem se debruçar sobre a questão de criar espaços que conciliem residência, trabalho e escola sob o mesmo teto. Mas antigas novidades, como o saneamento básico e o arejamento de vias e construções, também são bem vindas. Em países como o Brasil, a ausência deles é inclusive obstáculo ao combate da Covid-19, como mostram estatísticas de contágio e mortes em áreas de moradias precárias.

— O home office pode ajudar a reduzir o trânsito e os deslocamentos, mas também aumentar a vida em bolhas, que já experimentamos no ambiente virtual — observa Guilherme Wisnik, arquiteto, ensaísta e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. — Pode haver uma mudança em relação ao ciclo que vivíamos, mais voltado ao compartilhamento, com espaços de coworking, imóveis do Airbnb.

A casa deixou de ser só dormitório e voltou a ser o centro do mundo, pondera Marcela Abla, copresidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil no Rio (IAB-RJ):

— Compreendendo melhor a casa, podemos planejar melhor as cidades, que deveriam ser pensadas não para um habitante genérico, mas a partir das diferenças das pessoas que nelas vivem. Pensar questões sociais, etárias, raciais e de gênero também é urbanismo.

Romanos e modernistas

A relação entre o desenho das cidades e as questões sanitárias é tão antiga quanto a própria civilização. Como lembra o arquiteto e urbanista Augusto Ivan, autor de “Porto do Rio: Construindo a modernidade”, os romanos já pensavam na abertura para o sol e altura dos prédios nas cidades que construíam.

Pior epidemia da História, que dizimou meia Europa no século XIV, a peste bubônica trouxe medidas sanitárias praticadas até hoje, como quarentenas e proibições de viagens, e intervenções urbanísticas, diz o historiador Marcos Leitão de Almeida:

— Uma das intervenções que alteraram profundamente a paisagem urbana foi o surgimento de túmulos monumentais, que idealizavam nobres mortos pela doença.

Um das respostas mais recentes veio na arquitetura modernista. Seus espaços abertos, bem iluminados, com farta circulação de ar e uso de materiais mais fáceis de limpar foram um reflexo dos surtos de tuberculose no século XIX e princípio do XX — um bom exemplo são “as escolas ao ar livre” de Suresnes, na França.

No livro “X-ray architecture”, a espanhola Beatriz Colomina mostra que os modernistas foram influenciados pelos sanatórios que surgiam na Suíça, com suas superfícies brancas e paredes envidraçadas. Acusada de ser estéril, a arquitetura modernista é, na verdade, esterilizada.

Urbanismo comunitário

O arquiteto e urbanista Washington Fajardo aponta que algumas comunidades têm conseguido resultados melhores contra o coronavírus do que governos, como Paraisópolis, em São Paulo, ou o Complexo do Alemão, no Rio.

— É evidente que essas comunidades têm capacidade gerencial de criar políticas que funcionem para elas. Mas é importante que elas estejam no foco das políticas públicas. As favelas até recebem infraestrutura, mas não são controladas. Isso faz com que sejam territórios sempre flexíveis e em crescimento, o que acaba implicando na construção de espaços insalubres.

Professor de Arquitetura da Universidade Federal Fluminense, Pedro da Luz Moreira também lembra da Rocinha, onde a tuberculose, causada por fatores como a falta de ventilação e luz solar, preocupa tanto quanto a Covid-19. Ele acredita que a saúde será destaque no 27º Congresso Mundial dos Arquitetos, que seria realizado este mês no Rio, mas foi adiado para 2021 por conta da pandemia.

— Uma cidade que promova saúde já é um tema constante. O urbanismo pode estimular hábitos como exercícios e caminhadas, ao oferecer boas calçadas, em vez de privilegiar espaços para carros. Mas também deve se voltar à saúde psíquica, dotando diferentes áreas da cidade com equipamentos educacionais e de lazer.

Cicloativistas torcem para que vias fechadas a carros nos EUA e na Ásia permaneçam assim, e já há especialistas dizendo que o coronavírus acelerou o fim das megacidades — com os contras superando os prós das metrópoles.

Membro do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil, Luiz Fernando Janot acredita que hospitais, shoppings e presídios serão modificados a partir da pandemia. A dúvida paira sobre a arquitetura habitacional, inserida no contexto da própria cidade.

— Cidades são o reflexo da sociedade. O mais relevante é entender como a sociedade vai mudar com a pandemia — opina Janot. — O que puder se aproveitar dos espaços públicos, ao ar livre, pode não só diminuir a pressão da pandemia. Pode também proporcionar proximidade entre seres humanos e o entendimento das suas diferenças.

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